quinta-feira, 23 de agosto de 2018

A GUERRA E OS SEUS MEDOS INESPERADOS



Ontem à noite deu-se o tradicional encontro-jantar de Agosto com o nosso conterrâneo gorjonense-São Brasense Almirante Martins Guerreiro antigo Concelheiro da Revolução e actual Director da Revista "O REFEENCIAL" da Associação 25b de Abril.
É um encontro de amigos de infância que agora é tradição, neste mês de férias, reunir as famílias para cavaquear acerca do que foi, é e poderá ser ainda o resto de nossas vidas em Portugal.
Estavam à mesa quatro combatentes da Guerra nas várias frentes coloniais e, por conseguinte, era inevitável falar dela e das histórias que cada um viveu e que a memória vai avivando à medida do correr da conversa.
O capitão Moleiro, às tantas, fala do grande medo que na Guiné um vez passara com o fogo amigo numa estrada às curvas apertadas onde a sua longa coluna apeada seguia tendo na frente um grupo de fuzileiros ainda inexperientes na guerra.
Logo a memória tomou conta da mente e esta começou a meditar acerca do meu maior e mais horrível medo de guerra passado também numa situação semelhante.

Atingido Nambuangongo na manhâ de 10 de Julho de 1961 logo na noite do dia seguinte o 1º Pelotão foi designado para ir a Zala buscar um "caterpiller" para integrar a operação de ocupação de Quipedro a iniciar na madrugada da noite da ida a Zala.
Quando chegámos de Zala com o bulldozer de madrugada já a coluna estava alinhada na picada em direcção a Quipedro, que distava cerca de 80 kms de Nambuangongo, zona montanhosa e de mata cerrada onde se julgava que o inimigo se tinha refugiado depois de derrotado nas suas praças fortes.
Mal nos juntámos na cauda da coluna à nossa espera na picada o Comandante deu ordem de arranque seguindo o lema adoptado para o efeito: "Segue, Segue, Vai Pró Chile" que imitava o gesto e dito pelo Soldado Mouraria que por sua vez imitava o cobrador do eléctrico Mouraria-Praça do Chile no qual ele se encavalitava à borla atrás quando era garoto.
A certa altura, íamos nós na traseira da coluna serpenteando às curvas subindo um morro alto quando de repente, lá na frente, a quilómetros de picada mas próximo em linha recta, se desencadeia um tiroteio intenso que parecia não parar mais.
As balas estrondavam nas copas das árvores e assobiavam por todos os lados em nosso redor na traseira da coluna parada no alto do morro.
Nunca, em outros tiroteios anteriores, tinha sentido um temor tamanho, uma tal ideia fixa de que alguém me estava tentando acertar no corpo para me matar, um medo tão brutal e irracional que olhava para mim para me certificar se já estava esburacado a deitar sangue do corpo.
Esta poderosa sensação mental irreprimível de iminência de morte originou um pavor horrível que durou muitos segundos. E o lento regresso ao estado normal durou minutos porque, não obstante o tiroteio continuar, a morte não se consumava e eu sentia-me continuar vivo o que me fez voltar os pensamentos ao racional.

Compreender-se-á, talvez, melhor a situação através da leitura do poema que exprime este episódio:

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Ia na última viatura da coluna, ao balouço
do cansaço da noite anterior sem dormir
quando de repente estremeço e ouço
um violento tiroteio e imensas balas a zunir
tão nítidas que pareciam passar rente aos ouvidos
ao corpo, às pernas e disparadas por alguém escondido
ali próximo e que estava a tentar acertar-me.
Desci do jipão agarrado à arma e fui colocar-me
entre a viatura e a barreira para ficar mais protegido
e tentar perceber donde vinham tantas balas e zunidos,
mas a ilusão dos sons e silvos das balas e dos disparos
era tanta que eu não conseguia discernir donde
vinham. Então o medo que em todos nós se esconde
soltou-se e fez-me viver um dos momentos mais raros
da minha vida na guerra colonial, senti medo, medo
e fiquei esperando que uma bala me atravessasse
o corpo em qualquer parte e a qualquer instante.
Não me lembro de pensar em nada de importante
nem de invocar o pai, a mãe ou Deus que me ajudasse
a não tombar ali entre Nambuangongo e Quipedro.
Não me enterrei no chão, mantive sempre os olhos abertos
redobrei a atenção e mirei tudo em redor
em estado de alerta e com os sentidos bem dispertos
e de arma na mão preparei-me para o pior.

Afinal o pior não era ali mas sim na frente
onde se dera a emboscada e se ouvia o tiroteio
e que devido às curvas e zique-zagues da picada
a frente e a traseira da coluna estavam a uma passada
de distância e em oposição com o inimigo no meio
que tinha feito dois feridos à nossa gente.
Ao ripostarem com armas automáticas, as nossas Tropas             
faziam assobiar as balas junto à traseira da coluna
e tão rente a nós que as ouvíamos assobiar uma a uma
além do estardalhaço que faziam ao embater nas copas
das árvores da floresta à nossa volta. Foi o enredo
de guerra que me fez apanhar o maior medo.
Dos nossos feridos havia um com muita gravidade
sangrava de forma ininterrupta e abundantemente.
Soubemos disso via rádio muito mais tarde
quando tudo já estava calmo e o medo ausente.
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Excerto do poema "Operação Frontal I" do livro "Esquadrão 149, A Guerra E Os Dias" de José Neves

2 comentários:

  1. Gosto de ver quem foi à guerra a dizer que teve medo. É, em si, sinal de amor à verdade. Eu por mim que andei pelas mesmas picadas do então furriel "José Neves" também tive momentos de medo. Chateia-me a falsa heroicidade. Aliás, tenho tendência para chamar mentirosos àqueles que afirmam nunca terem tido medo.
    Um abraço de consideração pela frontalidade cívica

    Américo Nunes

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  2. «Então o medo que em todos nós se esconde soltou-se...

    É de nossa matureza e nasce connosco como em todos os seres vivos e por isso, também, a todos a natureza dotou do seu meio próprio e adequado de defesa e quase sempre tão imprevistos como incrivelmente artificiosos.
    Quem o nega, ou nunca passou por uma verdadeira situação de medo pessoal ou trata-se de um grosso fanfarrão.
    Ou como aqueles militarões maus que, bem protegidos pelos galões(e às vezes apenas por divisas)e sentinelas nos quartéis murados tradicionais em tempo de paz, quando metidos na guerra nos acampamentos isolados no mato, tremiam de medo e não saíam do acampamento no qual impunham e sentinelas quase encostadas umas às outras.

    Também um abraço pela nossa vida militar e medos em comum e pela visita
    a este espaço de memórias desses tempos.

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