segunda-feira, 15 de março de 2021

DIA DE BARBARIDADES DE GUERRA


Este foi o dia inicial bárbaro, sujo e violento da guerra colonial obrigatória para cerca de um milhão de soldados na qual tombaram cerca de mil mortos e feridos graves evacuados, para nada.  

O dia de barbaridades a que uma democracia (USA) deu o aval porque uma ditadura (Salazar) não quis negociar nem ceder um mínimo para salvaguardar o essencial como a fixação ou o regresso dos habitantes portugueses em paz e com dignidade; o "Velho do Restelo" era sábio e tinha a visão da razão a prazo histórico, "A que novos desastres determinas/De levar estes reinos e esta gente/Que perigos e que mortes lhe destinas/Debaixo dalgum nome preminente?"; já se tinham ido as "Minas" e os "Fortes" ao longo da costa africana e mesmo depois de ter ido violentamente a jóia de Albuquerque na Índia  e nem assim o velho mais velho que o Velho do Restelo no Séc. XX e teimoso como a mulher do piolhoso não alterou um milímetro de sua posição de fé e sacrifício.

Foi coerente? Foi, com a sua visão beata de que a morte é redentora e salva as almas dos heróis sacrificados em nome da pátria; foi, com a sua visão do soldado herói que quis imitar mas o facto é que nunca pôs o cu em África e mal arriscou sair de S. Bento onde foi sempre o impopular "Esteves"; foi incoerente com a sua mesquinha visão de velho forreta quando gastou milhões aforralhados à custa de trabalho escravo com a guerra colonial para vir a cair de cima de uma cadeira podre de velha que lhe deu a morte.

E, ao contrário de Pedro com Inez foi pobre, triste, estúpido e sem nenhuma grandeza a desonestidade do procedimento subserviente doentio dos seus apaniguados fazendo-o crer que mesmo incapaz, sem memória e inteligência, ainda era o Doutor Professor Presidente do Concelho até morrer; afinal morreu como viveu, segundo uma permanente mentira histórica.     

Esta é a casa da roça "Fazenda Maria Fernanda" onde, sob os escombros deixados no chão neste dia 15 de Março de 1961 pela UPA, parte do Esq. 149 dormiu algumas noites depois da desobstrução da respectiva picada a partir de Balacende e que passava pela travessia do rio Lifune, "Roça Margarido" e por fim a Maria Fernanda cerca de 15 Kms depois.

A desobtrução da picada e ocupação destas roças de café, duas das maiores do norte angolano deu-se, depois da tomada de Nambuangongo, Quipedro e passagem pela Pedra Verde, poucos dias depois de ficarmos aquartelados nas Mabubas; uma recordação inesquecível da estadia na Maria Fernanda foi uma repentina dor de dentes que me obrigou a ser evacuado por Dornier para Luanda para tirar o dente infectado; foi o meu primeiro dente deitado fora e o meu baptizo de avião que deu origem a outra história; foram comigo para Luanda os meus camaradas colegas Palhavã e Chambel que combinaram com o oficial piloto fazer-me um especial baptizo de voo, assim; mal entrei o piloto avisou-me que ao lado da porta onde eu ia haviam sacos de plástico para quem vomitava devido aos solavancos, sacudidelas e variações rápidas de direcção de que tomei atenção; ao chegar a Luanda o piloto faz-se à pista e de repente empina o avião para o ar, dá umas variações bruscas e zás, ao aterrar finalmente mal tive tempo de jogar a mão à porta de saída e não de tirar e desenrolar o saco plástico; vomitei fortemente metade dentro do avião e metade na pista enquanto os meus camaradas colegas riam de gozo.

Afinal, se as partidas fossem todas assim as memórias de guerra também davam para contar histórias sentimentais mais tarde, após o regresso. 

 

domingo, 7 de março de 2021

A GUERRA COLONIAL: EMBARCAR OU DAR O SALTO. 2

Terminámos a parte 1 com a conclusão de que dar o salto, sendo comum a desertores e a emigrantes, tem significados diferentes porque partem e derivam de situações e intenções de vida completamente díspares e até opostas; ao desertar um ex-aluno candidato a Oficial do exército comete um acto político e requer o estatuto de exilado político; o aprendiz de pedreiro requer o estatuto de trabalhador indiferenciado  e requer trabalho e residência; um usa o salto como meio de continuar a ser um homem político o outro usa-o para fazer do trabalho puro e duro a sua política.    

Estamos, portanto, perante uma grande disparidade de motivações e fins que, consequentemente, se reflectem e vão dar origem a uma igual grande disparidade entre combatentes de armas na mão e exilados desertores mesmo que de uso de palavras e caneta na mão; estes continuarão sendo uma elite mais ou menos comodamente instalada em Paris ou Estocolmo sem correr riscos ao contrário dos combatentes que isolados no meio da mata correm risco de morte dia e noite ininterruptamente todos dias cada 24 horas do dia.

Esta disparidade de situações é bem evidente quando, sempre que discutimos com desertores exilados estes, desabafam que sempre se sentiram bem no exílio, satisfeitos, não arrependidos de nada, foram e vivem agora felizes com as suas memórias, sentem-se do lado certo da história, não há entre eles deficientes físicos nem mentais, não há qualquer problema nacional com os desertores e exilados da guerra.

E com os combatentes? Podem os combatentes sentir-se bem, satisfeitos, contentes, felizes com o que passaram isolados no meio do mato alimentados a ração de combate, a comer o pó das picadas, a passar dias a pé por carreiros e trilhos à intempérie ora ao sol tórrido sem água no cantil ora sob chuva e lama sem abrigo; pode alguém sentir-se bem depois de ver o seu melhor amigo do acampamento tombar na picada ao seu lado, de repente? 

Como podem os combatentes ser abertos, alegres ou sentirem-se bem e contarem histórias fora do seu grupo de camaradas quando a única coisa boa que lhes aconteceu foi terem voltado vivos da guerra? Como podem os combatentes contar histórias sentimentais do tipo o salto do desertor se foram obrigados a deixar familiares, mulheres e filhos pequenos, noivas, namoradas, ofícios, amigos, festas e vidas felizes nas suas aldeias  para embarcar e viajar aos trambolhões no fundo de porões dos navios transatlânticos onde mal respiravam por um tubo de lona que vinha da parte emersa do navio e onde nem conseguiam manter-se em cima das tarimbas quanto mais dormir? E mal desembarcados imediatamente enviados para o interior de uma guerra de guerrilha em plena selva africana que lhes tapava o céu e toldava os sentimentos donde brotavam lágrimas secas para não serem vistas. 

Para o combatente não houve salto para uma história feliz mas sim um assalto à sua felicidade de simples e puro aldeão analfabeto aprendiz de um ofício ou trabalhador de sol a sol nas suas pequenas parcelas de terra arável. E depois da guerra, novamente entregues à sua sorte, tiveram de emigrar a salto  ou por carta de chamada onde depararam com outra guerra de sobrevivência pelo trabalho duro no bâtiment e preocupações de chamar mulheres e filhos para os safar de irem, também eles, parar à mesma guerra que os pais.

Contudo, mesmo do interior de tão grande desumana maldade como é uma guerra, ainda assim se podem extrair alguns casos que são exemplos para o futuro; a amizade e solidariedade humana que se estabelece entre camaradas de armas no isolamento dos acampamentos no mato; o real conhecimento das nossas capacidades de sofrer e saber aguentar sem se ir abaixo; o aprender a sobreviver em condições de total isolamento sem habitação, higiene e sob perigo de morte constante; a unidade, lealdade e entreajuda fraterna, limpa, verdadeiramente amiga e desinteressada estabelecida entre todos. 

Estas condições de vida comum dura e perigosa igual para todos foram parte da formação de soldados para melhores e mais experientes homens aptos a enfrentar as lutas posteriores da vida civil; realmente a sua conduta posterior até hoje é mais de ouvir, observar e compreender do que falar ou contar histórias tristes ao contrário de outros; eles sentem e sabem que a história acabará por dar-lhes razão quanto mais não seja porque estiveram do lado dos que sofreram e deram o sangue em sacrifício de nada; sentem e sabem que foi, sobretudo, o sacrifício sem sentido de suas vidas jovens, umas perdidas para sempre e todas durante dois anos de vida de juventude foi, dizia, o maior e decisivo contributo para uma tomada de consciência e revolta das forças militares portuguesas para acabar com a dita guerra.

E tanto é assim que são os nomes de combatentes mortos ou sobreviventes que já começam a estar inscritos em pedra de pequenos monumentos e memoriais levantados em sua honra por cidades, vilas e aldeias. 

E até poderão, em tempos posteriores, alguns querer rever o passado de hoje para redefinir e alterar a história e querer deitar abaixo tão modestos honoríficos memoriais sob o pretexto de  comemorar outra coisa oposta ou diferente que, nem por isso, os combatentes deixarão de ser aqueles que estiveram, obrigados, do lado dos sacrificados em vão, para mais, iludidos por mor de falsos valores.
 

Thursday, March 04, 2021

A GUERRA COLONIAL: EMBARCAR OU DAR O SALTO. 1

 
 
Um camarada de guerra alertou-me para o programa "Outras Histórias - Fui Desertor" da RTP passado no dia 08.02.2021 acerca de dois desertores assumidos da guerra colonial. Logo pensei que teria sido mais uma conversa sobre aquela sempre revisitada discussão indeterminada sobre qual das situações contém maior valor de comportamento e heroicidade; ter ido ou ter desertado da guerra; ou quem contribuíra mais para denunciar a guerra injusta do caduco colonialismo e, desse modo de luta, ajudara fortemente a uma tomada de consciência maioritária dos portugueses contra a guerra. 

Logo após o 25 Abril muitos intelectuais regressados do exílio voluntário uns ocuparam altos cargos nos sucessivos governos e outros as redacções de meios de comunicação e todos quiseram sempre criar uma ideia dominante de que, pela coragem de se oporem e denunciar a guerra injusta e suja nas colónias, eram eles os exilados, os certos e verdadeiros opositores e revoltosos combatentes contra a guerra ao contrário dos que embarcaram e lutaram de armas na mão ao serviço do regime colonialista. 

Entre as duas situações limite, desertor-herói e combatente-cobarde e vice versa combatente-herói e desertor-cobarde, que os mais radicais querem fazer passar ainda hoje haverá, certamente, um lugar histórico que o tempo vai fixar depois que a poeira ainda no ar dos que viveram os acontecimentos, assente definitivamente e se possam reunir todos os dados, relatos, registos e documentos verdadeiros para serem compilados, pensados, interpretados, pesados e julgados em conjunto, comummente, afim de estabelecer o papel e o impacto de cada lado e por fim definir o devido lugar de quem foi quem futuramente na história do país. 

A sentimental história destes dois desertores e sua passagem a salto para França é paralela a milhares de pobres emigrantes que fugiram da guerra e miséria como aquela do Juvenal, um gorjonense que no dia de embarque em 1961, após o desfile no cais, atirou a farda ao rio e tomou rumo à Guarda onde passou a fronteira a salto até um monte espanhol onde esperou uma semana por mais dezassete saltantes (mais dois gorjonenses) e guiados por passadores que se revezavam cruzaram a Espanha por carreiros de cabras por montes e vales sempre a pé até à fronteira de França que passaram de carro. 

A história é paralela mas não igual; O Juvenal era um rapaz pobre, aprendiz de pedreiro que ajudava à casa, já tinha familiares, também idos a salto, a trabalhar em França como apoio imediato para tirar os papéis para obter trabalho no bâtiment e residência no bidonville; os nossos jovens da história contada pela RTP eram ex-alunos da Academia Militar para onde entraram em 1961, início da guerra, e depois são desertores do curso de Oficias Milicianos em 1970 criando na descrição de sua história um hiato longo em branco entre uma data e outra: ter-se-iam demitido da Academia Militar e ido para uma Academia civil e serem incorporados e mobilizados em 1970? 

Desde logo uma diferença enorme de significado dá início ao que aparenta ser uma mesma actitude, dar o salto; os ex-alunos da Academia Militar fogem à desgraça da guerra ao passo que o aprendiz de pedreiro foge à guerra para não juntar uma desgraça à miséria. 

 (continua)
 
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quinta-feira, 4 de março de 2021

A GUERRA COLONIAL: EMBARCAR OU DAR O SALTO. 1

 

 
Um camarada de guerra alertou-me para o programa "Outras Histórias - Fui Desertor" da RTP passado no dia 08.02.2021 acerca de dois desertores assumidos da guerra colonial. Logo pensei que teria sido mais uma conversa sobre aquela sempre revisitada discussão indeterminada sobre qual das situações contém maior valor de comportamento e heroicidade; ter ido ou ter desertado da guerra; ou quem contribuíra mais para denunciar a guerra injusta do caduco colonialismo e, desse modo de luta, ajudara fortemente a uma tomada de consciência maioritária dos portugueses contra a guerra. 

Logo após o 25 Abril muitos intelectuais regressados do exílio voluntário uns ocuparam altos cargos nos sucessivos governos e outros as redacções de meios de comunicação e todos quiseram sempre criar uma ideia dominante de que, pela coragem de se oporem e denunciar a guerra injusta e suja nas colónias, eram eles os exilados, os certos e verdadeiros opositores e revoltosos combatentes contra a guerra ao contrário dos que embarcaram e lutaram de armas na mão ao serviço do regime colonialista. 

Entre as duas situações limite, desertor-herói e combatente-cobarde e vice versa combatente-herói e desertor-cobarde, que os mais radicais querem fazer passar ainda hoje haverá, certamente, um lugar histórico que o tempo vai fixar depois que a poeira ainda no ar dos que viveram os acontecimentos, assente definitivamente e se possam reunir todos os dados, relatos, registos e documentos verdadeiros para serem compilados, pensados, interpretados, pesados e julgados em conjunto, comummente, afim de estabelecer o papel e o impacto de cada lado e por fim definir o devido lugar de quem foi quem futuramente na história do país. 

A sentimental história destes dois desertores e sua passagem a salto para França é paralela a milhares de pobres emigrantes que fugiram da guerra e miséria como aquela do Juvenal, um gorjonense que no dia de embarque em 1961, após o desfile no cais, atirou a farda ao rio e tomou rumo à Guarda onde passou a fronteira a salto até um monte espanhol onde esperou uma semana por mais dezassete saltantes (mais dois gorjonenses) e guiados por passadores que se revezavam cruzaram a Espanha por carreiros de cabras por montes e vales sempre a pé até à fronteira de França que passaram de carro. 

A história é paralela mas não igual; O Juvenal era um rapaz pobre, aprendiz de pedreiro que ajudava à casa, já tinha familiares, também idos a salto, a trabalhar em França como apoio imediato para tirar os papéis para obter trabalho no bâtiment e residência no bidonville; os nossos jovens da história contada pela RTP eram ex-alunos da Academia Militar para onde entraram em 1961, início da guerra, e depois são desertores do curso de Oficias Milicianos em 1970 criando na descrição de sua história um hiato longo em branco entre uma data e outra: ter-se-iam demitido da Academia Militar e ido para uma Academia civil e serem incorporados e mobilizados em 1970? 

Desde logo uma diferença enorme de significado dá início ao que aparenta ser uma mesma actitude, dar o salto; os ex-alunos da Academia Militar fogem à desgraça da guerra ao passo que o aprendiz de pedreiro foge à guerra para não juntar uma desgraça à miséria.

(continua)