Terminámos a parte 1 com a conclusão de que dar o salto, sendo
comum a desertores e a emigrantes, tem significados diferentes porque
partem e derivam de situações e intenções de vida completamente díspares
e até opostas; ao desertar um ex-aluno candidato a Oficial do exército
comete um acto político e requer o estatuto de exilado político; o
aprendiz de pedreiro requer o estatuto de trabalhador indiferenciado e
requer trabalho e residência; um usa o salto como meio de continuar a ser um homem político o outro usa-o para fazer do trabalho puro e duro a sua política.
Estamos,
portanto, perante uma grande disparidade de motivações e fins que,
consequentemente, se reflectem e vão dar origem a uma igual grande
disparidade entre combatentes de armas na mão e exilados desertores
mesmo que de uso de palavras e caneta na mão; estes continuarão sendo
uma elite mais ou menos comodamente instalada em Paris ou Estocolmo sem
correr riscos ao contrário dos combatentes que isolados no meio da mata
correm risco de morte dia e noite ininterruptamente todos dias cada 24
horas do dia.
Esta
disparidade de situações é bem evidente quando, sempre que discutimos
com desertores exilados estes, desabafam que sempre se sentiram bem no
exílio, satisfeitos, não arrependidos de nada, foram e vivem agora
felizes com as suas memórias, sentem-se do lado certo da história, não
há entre eles deficientes físicos nem mentais, não há qualquer problema
nacional com os desertores e exilados da guerra.
E
com os combatentes? Podem os combatentes sentir-se bem, satisfeitos,
contentes, felizes com o que passaram isolados no meio do mato
alimentados a ração de combate, a comer o pó das picadas, a passar dias a
pé por carreiros e trilhos à intempérie ora ao sol tórrido sem água no
cantil ora sob chuva e lama sem abrigo; pode alguém sentir-se bem depois
de ver o seu melhor amigo do acampamento tombar na picada ao seu lado,
de repente?
Como
podem os combatentes ser abertos, alegres ou sentirem-se bem e contarem
histórias fora do seu grupo de camaradas quando a única coisa boa que
lhes aconteceu foi terem voltado vivos da guerra? Como podem os
combatentes contar histórias sentimentais do tipo o salto do desertor se
foram obrigados a deixar familiares, mulheres e filhos pequenos,
noivas, namoradas, ofícios, amigos, festas e vidas felizes nas suas
aldeias para embarcar e viajar aos trambolhões no fundo de porões dos
navios transatlânticos onde mal respiravam por um tubo de lona que vinha
da parte emersa do navio e onde nem conseguiam manter-se em cima das
tarimbas quanto mais dormir? E mal desembarcados imediatamente enviados
para o interior de uma guerra de guerrilha em plena selva africana que
lhes tapava o céu e toldava os sentimentos donde brotavam lágrimas secas
para não serem vistas.
Para o combatente não houve salto para
uma história feliz mas sim um assalto à sua felicidade de simples e
puro aldeão analfabeto aprendiz de um ofício ou trabalhador de sol a sol
nas suas pequenas parcelas de terra arável. E depois da guerra,
novamente entregues à sua sorte, tiveram de emigrar a salto ou por carta de chamada onde depararam com outra guerra de sobrevivência pelo trabalho duro no bâtiment e preocupações de chamar mulheres e filhos para os safar de irem, também eles, parar à mesma guerra que os pais.
Contudo,
mesmo do interior de tão grande desumana maldade como é uma guerra,
ainda assim se podem extrair alguns casos que são exemplos para o
futuro; a amizade e solidariedade humana que se estabelece entre
camaradas de armas no isolamento dos acampamentos no mato; o real
conhecimento das nossas capacidades de sofrer e saber aguentar sem se ir
abaixo; o aprender a sobreviver em condições de total isolamento sem
habitação, higiene e sob perigo de morte constante; a unidade, lealdade e
entreajuda fraterna, limpa, verdadeiramente amiga e desinteressada
estabelecida entre todos.
Estas
condições de vida comum dura e perigosa igual para todos foram parte da
formação de soldados para melhores e mais experientes homens aptos a
enfrentar as lutas posteriores da vida civil; realmente a sua conduta
posterior até hoje é mais de ouvir, observar e compreender do que falar
ou contar histórias tristes ao contrário de outros; eles sentem e sabem
que a história acabará por dar-lhes razão quanto mais não seja porque
estiveram do lado dos que sofreram e deram o sangue em sacrifício de
nada; sentem e sabem que foi, sobretudo, o sacrifício sem sentido de
suas vidas jovens, umas perdidas para sempre e todas durante dois anos de
vida de juventude foi, dizia, o maior e decisivo contributo para uma
tomada de consciência e revolta das forças militares portuguesas para acabar com a dita guerra.
E
tanto é assim que são os nomes de combatentes mortos ou sobreviventes
que já começam a estar inscritos em pedra de pequenos monumentos e
memoriais levantados em sua honra por cidades, vilas e aldeias.
E
até poderão, em tempos posteriores, alguns querer rever o passado de hoje para redefinir e alterar a história
e querer deitar abaixo tão modestos honoríficos memoriais sob o pretexto de comemorar
outra coisa oposta ou diferente que, nem por isso, os combatentes deixarão de ser aqueles que estiveram, obrigados, do lado dos sacrificados em vão, para mais, iludidos por mor de falsos valores.
A GUERRA COLONIAL: EMBARCAR OU DAR O SALTO. 1
Um
camarada de guerra alertou-me para o programa "Outras Histórias - Fui
Desertor" da RTP passado no dia 08.02.2021 acerca de dois desertores
assumidos da guerra colonial.
Logo pensei que teria sido mais uma conversa sobre aquela sempre
revisitada discussão indeterminada sobre qual das situações contém maior
valor de comportamento e heroicidade; ter ido ou ter desertado da
guerra; ou quem contribuíra mais para denunciar a guerra injusta do
caduco colonialismo e, desse modo de luta, ajudara fortemente a uma
tomada de consciência maioritária dos portugueses contra a guerra.
Logo
após o 25 Abril muitos intelectuais regressados do exílio voluntário
uns ocuparam altos cargos nos sucessivos governos e outros as redacções
de meios de comunicação e todos quiseram sempre criar uma ideia
dominante de que, pela coragem de se oporem e denunciar a guerra injusta
e suja nas colónias, eram eles os exilados, os certos e verdadeiros
opositores e revoltosos combatentes contra a guerra ao contrário dos que
embarcaram e lutaram de armas na mão ao serviço do regime
colonialista.
Entre as duas
situações limite, desertor-herói e combatente-cobarde e vice versa
combatente-herói e desertor-cobarde, que os mais radicais querem fazer
passar ainda hoje haverá, certamente, um lugar histórico que o tempo vai
fixar depois que a poeira ainda no ar dos que viveram os
acontecimentos, assente definitivamente e se possam reunir todos os
dados, relatos, registos e documentos verdadeiros para serem compilados,
pensados, interpretados, pesados e julgados em conjunto, comummente,
afim de estabelecer o papel e o impacto de cada lado e por fim definir o
devido lugar de quem foi quem futuramente na história do país.
A sentimental história destes dois desertores e sua passagem a salto
para França é paralela a milhares de pobres emigrantes que fugiram da
guerra e miséria como aquela do Juvenal, um gorjonense que no dia de
embarque em 1961, após o desfile no cais, atirou a farda ao rio e tomou
rumo à Guarda onde passou a fronteira a salto até um monte espanhol onde esperou uma semana por mais dezassete saltantes
(mais dois gorjonenses) e guiados por passadores que se revezavam
cruzaram a Espanha por carreiros de cabras por montes e vales sempre a
pé até à fronteira de França que passaram de carro.
A história é paralela mas não igual; O Juvenal era um rapaz pobre, aprendiz de pedreiro que ajudava à casa, já tinha familiares, também idos a salto, a trabalhar em França como apoio imediato para tirar os papéis para obter trabalho no bâtiment e residência no bidonville;
os nossos jovens da história contada pela RTP eram ex-alunos da
Academia Militar para onde entraram em 1961, início da guerra, e depois
são desertores do curso de Oficias Milicianos em 1970 criando na
descrição de sua história um hiato longo em branco entre uma data e
outra: ter-se-iam demitido da Academia Militar e ido para uma Academia
civil e serem incorporados e mobilizados em 1970?
Desde logo uma diferença enorme de significado dá início ao que aparenta ser uma mesma actitude, dar o salto;
os ex-alunos da Academia Militar fogem à desgraça da guerra ao passo
que o aprendiz de pedreiro foge à guerra para não juntar uma desgraça à
miséria.
(continua)