quinta-feira, 18 de novembro de 2021

SABER COMANDAR PARA ALÉM DO "RDM", COM SUCESSO.

Falei num texto anterior da ideia do Cap. Rui Coelho Abrantes, Comandande do Esq. Cavª 149 mobilizado para Angola em 1961, querer desembarcar o Esquadrão em Luanda vestido à índio com peles e plumas armados de arcos e flechas.

Era algo tão inesperado que parecia apenas pensável por alguém diferente e distante da normalidade dos estudos militares. Contudo quem o pensava e propunha era, precisamente, um Cap. Cavª. professor de táctica militar na Academia.

Talvez por ser pensador académico sobre tácticas militares, ou por isso mesmo, quando foi mobilizado meditou sobre a especificidade daquela guerra de guerrilha ou por pura intuição e imaginação ou, melhor, por uma conjugação das duas coisas o Cap. Abrantes foi sempre inventor-criador de ideias fora de todas as ortodoxias militares; aliás como se impunha naquela guerra.

Foram, cronologicamente, surgindo as seguintes imaginativas e inovadoras soluções de comando:

1º. Tudo começa ainda o Esquadrão não estava completo e só parte dos militares mobilizados tinham fardas de caqui para uso no ultramar e ele manda formar, na parada do Reg. Cavª. 7, algo à semelhança de um Pelotão e ordena ao Alferes de serviço; - agora vocês vão descer pelos passeios dos dois lados da Calçada da Ajuda, devidamente equipados à Ultramar e de "mauser" na mão e, quando o Alferes apitar, vocês têm de desaparecer imediatamente do passeio; devem enfiar-se dentro dos cafés e casas de comércio ou mesmo pelas portas e janelas das residências locais -. Tudo foi cumprido como descrito e imagine-se o susto dos passantes e especialmente dos residentes ao verem suas casas invadidas, de repente, por homens desconhecidos armados. E também tudo, aquando dos ataques nas picadas da selva angolana, não foi muito diferente do que imaginara o Capitão na selva humana da Calçada da Ajuda em Lisboa.   

2º. Se não desembarcámos em Luanda vestidos e equipados à índio partimos de Luanda para o Caxito, Fazenda Tentativa, mascarados com um lenço preto ao estilo de uma mascarilha à Zorro; atravessámos Luanda de farda de caqui nova, barrete de dois bicos bem espetados à cavaleiro e também bem ao alto as antenas dos rádios de transmissões; até à Fazenda Tentativa não havia pó mas a ideia era, mais uma vez,  impressionar os possíveis "olheiros" do inimigo em Luanda.

3º. Na Fazenda Tentativa onde estava instalado o Comando da ZIN, Zona de Intervenção Norte, o Cap. Abrantes, depois de uma reunião onde aceitara participar na perigosa Operação Viriato que consistia na tomada de Zala e, se possível, a tomada de Nambuangongo, reuniu o Esquadrão em formatura à tardinha e preparou o pessoal para uma grande e prestigiosa mas igualmente perigosa operação em que iríamos tomar parte a partir do Ambriz; depois de referir os perigos dado termos de enfrentar o inimigo em terreno ocupado por ele desde o 15 de Março de 1961acabou dizendo: - não se preocupem porque foi-me entregue uma caixa preta que detecta todos os terroristas escondidos ao longo das picadas -. Os Soldados ficaram intrigados e muitos perguntavam se era verdade que o Comandante tinha essa caixa especial à qual os subalternos respondiam, sem desfazer o efeito mágico-psicológico da afirmação, que se o Capitão o dizia é porque era verdade. Verdade foi que muitos homens do Esquadrão foram receptivos à ideia, ficaram mais calmos e todos foram dormir mais descansados.

4º. No Ambriz, com o Esquadrão já preparado para arrancar naquela madrugada de 26 de Julho de 1961 em direcção a Zala passando pelo Cavunga, Quimbumbe, Quimazangue, Zala, na véspera o Cap. Abrantes ordenou ao 3º Pelotão fazer o reconhecimento da picada até ao Cavunga onde, segundo informações recolhidas, era suposto haver um aquartelamendo do inimigo e onde, realmente, o Pelotão foi atacado e sofreu cinco feridos ligeiros de disparos de canhangulos. Regressado ao Ambriz e entregue os feridos ao cuidado do Dr. Pimenta, contado ao Cap. o sucedido de imediato recebe ordem para reforçar o Pelotão e regressar imediatamente ao mesmo local afim de surpreender o inimigo e infligir-lhe uma derrota; apesar da contestação veemente do Alferes Ribeiro de Carvalho Comandante do 3º Pelotão este acabou por voltar ao local do quartel da UPA mas os guerrilheiros e famílias puseram-se todos em fuga através dos carreiros da mata. Vários ensinamentos prático-teóricos se retiraram do caso; primeiro, que era da boa táctica militar saber explorar a vitória; segundo, mostrar ao inimigo que a "nossa tropa" não tinha medo daquele inimigo; terceiro, que o Comandante era um militar capaz e sabia o que fazia; quarto, todo o pessoal do Esq. ficou admirado e conquistado pela firmeza e serenidade do Capitão; quinto, perante tal atitude militar toda a Unidade se sentiu mais protegida, mais confiante, sem medos e mais unida.

5º. Eram percorridos 110 Km de picada desde Ambriz e estávamos a 30 Km de Zala, acampados na Fazenda Matombe, local de retemperar forças e, sobretudo, repensar a estratégia de progressão; e deu-se o grande salto inovador que consistiu em aliviar as viaturas retirando-lhe toda a protecção improvisada de chapas metálicas que encurralavam e dificultavam o salto dos soldados para o terreno e entrar na mata; aumentar a velocidade de progressão pela táctica da progressão contínua, dia e noite, sem paragem nem aquartelamento; tal foi um sucesso completo pois desmobilizou o inimigo porque não só não tinha tempo de montar obstáculos e emboscadas à nossa frente como os seus ataques nocturnos seriam facilmente localizado pelo fogo dos disparos. 

Soube-se depois que o nosso guia e pequeno fazendeiro, Sr. Ribeiro, que fizera a braço próprio a pequena Fazenda Matombe, confidenciara ao Comandante que o gentio local respeitava a noite como momento de estar em casa com a mulher ao abrigo da cubata e ao calor da fogueira. E tal confidência fora a campainha que despertara o pensamento militar do Cap. Abrantes para a tomada de tão inusitada como valiosa decisão.             

6º. Na tomada de Zala apesar de um morto e vários feridos ligeiros vários episódios de comando directo se deram. i) Ordenou avançar apeados e no meio da picada pedia com força que os homens seguissem no interior da orla da mata para não serem alvos à vista dos atiradores no alto dos morros laterais, tal como treinara na Calçada da Ajuda em Lisboa. ii) Após a tomada de Zala, o içar da bandeira portuguesa e  entregue ao Chefe de Posto a Administração Civil do território local, quis arrancar imediatamente para Nambuangongo. iii) O Cap. dá uma entrevista à equipa da RTP, que nos acompanhava, afirmando categoricamente que chegaria a Nambuangongo custasse o que custasse nem que fosse a pé. iv) Contudo, aqui sofreu um revés dada a oposição dos Oficiais subalternos porque, sobretudo, além dos feridos e esgotados não havia munições suficientes pois pensava-se que o troço para Nambuangongo seria o mais bem guardado e defendido pelo inimigo. v) Capinou-se uma encosta de terreno para servir de pista e permitir aos pequenos Dornier DO 26 aterrar com munições e de volta levar os feridos mas de Luanda enviaram munições de madeira usadas para instrução militar. vi) O Cap. ainda assim, mesmo com tão poucas condições de precaução e ameaças de severos castigos militares, propôs avançar mas não conseguiu demover os outros Oficiais. 

Anos mais tarde confidenciar-nos-ia que caso o Pelotão de Panhards dos Dragões de Luanda se dispusessem arrancar falo-ia com mais o Pelotão de Reconhecimento do Alferes Ruben, 2º Comandante, e outro pessoal de serviços disposto a fazê-lo voluntariamente. vii) Tinha tido razão pois o inimigo tinha apostado tudo na defesa de Zala e sentiu-se impotente para nos deter pelo que a caminhada, noite e dia, para Nambuangongo deu-se apenas com os contratempos de abatizes e pontes derrubadas ao longo da picada até ao objectivo final. viii) Tinha-mos ganho um dia, contudo, nem mesmo esse ganho seria suficiente pois o Bat. Caçadores 96 do Cor. Maçanita já estava acampado há dias a cerca de 6 kms de Nambuangongo.

7º. Depois de um dia passado em Nambuangongo o Esq. recebeu ordem de desobstruir o itinerário até Quipedro passando por Quixico e fazer a ligação com os pára-quedistas que seriam lançados em Quipedro em 13 de Agosto de 1961. Cumprida a rigor tal missão lá ficamos até 4 de Setembro depois de dois mortos, o Soldado Aguiar e o 2º Sargento Mota e vários feridos dos quais cinco evacuados e um deles, o Furriel Milho, cego de uma vista.

Também aqui se dá uma atitude enérgica, e talvez inédita, por parte do Ten. Mil. médico Dr. Pimenta que, segundo o entendimento e escola de comando do Cap. Comandante Abrantes, contra o regulamentado obrigou o Oficial piloto do Dornier a transportar o 2º Sargento Mota para Luanda não obstante o considerar morto contra a opinião médica que o considerava ainda vivo e responsabilizava o piloto pela eventual morte do Mota por falta de socorro; depois do Aguiar que tivera morte instantânea nunca mais o Dr. Ten. médico deixou que outro morto fosse enterrado no mato.

Haveria de dar-se mais tarde outra situação idêntica no Mucondo com o soldado Pires manifestamente morto mas que o Ten. Mil. Pimenta fez valer a sua condição de médico para obrigar o Cap. piloto a transportar o morto para Luanda; havia uma consonância de pensamento entre Cap. Comandante e Os Oficiais do Esquadrão de como conduzir a tropa naquela situação de guerra isolados no mato rodeados de inimigos; os soldados observavam e sentiam o valoroso comportamento dos Oficiais em sua defesa e orgulhavam-se disso pelo que, por sua vez, estavam sempre prontos e disciplinados a seguir os seus oficiais.

8º. Nova missão foi dada ao Esq. 149: desobstrução do itinerário Quimanoxe-Quijoão-Caje-Fazenda Maria Fernanda-Rio Dange-Cassacala a fim de guarnecer o flanco das tropas que actuavam na "Operação Esmeralda" na área da "Pedra Verde", Úcua. Esta Operação implicava a transposição do Rio Dange na área de Quijoão.

Iniciou-se o acampamento junto da margem direita do grande Rio Dange com a desmatação de uma área para improvisar um heliporto; foi esta a primeira vez que tivemos o apoio de helicóptero que trouxe o tão faltado como desejado correio e transportou os dois feridos graves que tinha-mos sob tratamento médico  deficiente na mata.   

A antiga jangada existente no local havia sido destruída e os restos jaziam no meio do rio a cerca de 400 m abaixo do local de transposição. Nada metia medo ou atrapalhava a ousadia do Comando e pessoal do Esquadrão; a 13 de Setembro iniciou-se a construção de uma nova jangada improvisando paus arrancados à mata, bidons velhos remendados como bóias, tábuas e pregos achados nas sanzalas abandonadas, arame farpado para amarrar os bidons aos paus de suporte do estrado; dois homens a nado e um cordel nos dentes fez passar o velho cabo de aço para a outra margem e atá-lo a um imbondeiro; com estacas de pau e tábuas velhas construiu-se um pequeno cais à altura da jangada.

A 15 de Setembro deu-se por concluída a jangada abarracada e posta a flutuar, aquela maravilha do improviso à portuguesa único no mundo; fez-se a experiência com um jipão com guincho e cerca de vinte homens para fazer de lastro de equilíbrio face à corrente do rio que era enorme no meio das águas; quando a jangada atingiu o centro da corrente começou a empinar e teve de ser reforçada, com mais homens que a nado atingiram e saltaram para a jangada, uns para fazer peso e outros ajudarem os que agarrados ao cabo de aço, que fazia de guia, puxarem contra a corrente aquela estranha embarcação a fim de a manterem segura e equilibrada; tudo esteve por um fio, contudo, dado a bravura do pessoal de bordo a jangada foi trazida para terra e feitos alguns reparos de estaleiro necessários; alguns bidons apanhados nas sanzalas tinham buracos e foi preciso tapa-los com cunhas de pau; reforçou-se a estrutura de arame que amarrava os bidons à estrutura de paus; procedeu-se a outras pequenas reparações para tornar mais sólida a totalidade da jangada.

E de novo a nossa improvisada embarcação plana foi lançada à água; dada a experiência obtida antes, este segundo lançamento à água correu controlado e a transposição deu-se; agora com um jipão em cada margem tínhamos um sistema motriz de vai-vem para rebocar a jangada contra a corrente mais adversa. E aos vai-e-vem a jangada transpôs os demais jipões e jipes e material dos pelotões de modo a poderem avançar em direcção à Pedra Verde protegendo a retaguarda e linha de fuga do inimigo; só no dia seguinte chegou, escoltada por um nosso Pelotão que já transpusera o rio, uma secção de engenharia com o material requerido para reforçar a jangada e esta poder transpôr as viaturas pesadas.

Esta perigosa e aventurosa mas pensada, calculada e acautelada operação foi executada de fio a pavio sem um único acidente ou a mínima perda de material apesar de alguns ataques do inimigo feitos de longe e sem perigo; foi uma realização espantosa só possível de realizar por tropa competente, moralizada e sobretudo ousada, sem medo de correr riscos.            

9º. Na Operação "Pé-Leve", penúltima operação sob Comando do Cap. Rui Coelho Abrantes, o Esquadrão reforçou durante dez dias o Bat. Caç. 158 na zona de Quizonve-Quisserongue entre os rios Onzo e Uezo, no Concelho do Ambriz. No dia 19 de Fevereiro de 1962 pelas 21 horas o acampamento, montado em círculo, foi perigosamente atacado de cerca de 50m por alguns homens armados com armas automáticas, precisamente, quando o Soldado Higino Algarvio junto de uma rodela de Soldados, tocava no seu acordeão.

Após a reacção imediata dos homens do Esquadrão, comandada pelo próprio Cap. Abrantes, dá-se o imprevisível da situação vinda directamente do Comandante; quando os homens do Esq. estavam todos em alerta de armas na mão virados para a mata e local do fogo inimigo, o Cap. Abrantes dá ordem para que o Higino agarre no acordeão e continue a tocar novamente, se possível, ainda mais alto para que o inimigo ouvisse bem.

Era assim o nosso Comandante; quando não havia uma vitória militar no terreno explorava imediatamente uma vitória psicológica sobre o inimigo, se tal fosse possível e adequada. Imaginem o que teriam pensado aqueles homens, já de si pouco foitos guerrilheiros, senão que o ataque fora falhado e mais importante, que tal som sobre-elevado do acordeão serviria para encobrir um assalto do nosso pessoal ao local onde se encontravam os atacantes.

A medida racional do atacante inimigo foi, naturalmente, fugir o mais rápido possível do local e, assim,  deixar-nos em sossego, naquela noite e seguintes.

10º. Desembarcámos em Luanda, sob o Comando do Cap. Rui Coelho Abrantes, em 07 de Julho de 1961 e este partiu para Portugal, o "Puto", em 19 de Março de 1962; se, em apenas cerca de nove meses de Comando do Esq. de Cav. 149, o Cap. Abrantes, quer segundo sua previsão do que era aquela guerra de guerrilha quer depois segundo uma observação atenta sobre as condições e práticas no terreno, quer da nossa tropa quer do inimigo acerca daquela guerra, imaginou, pôs em prática e desenvolveu todo um conjunto de ideias inovadoras para a acção vitoriosa do Esquadrão no terreno, a questão é; quantas mais teria imaginado e posto em prática em benefício dos Soldados e glória do Esquadrão de Cavalaria 149 naquela campanha de 1961-1963 em Angola.


terça-feira, 9 de novembro de 2021

JOÃO ALVES PIMENTA 1931 - 2021

Ten. Mil. médico do Esquadrão de Cavalaria nº 149 entre 1961-1963 em Angola, natural de Ponte de Sor, nascido em 06 de Maio de 1931 faleceu ante-ontem em 07 de Novenbro de 2021.

Figura exemplo de vida ímpar do Esquadrão foi-o igualmente na sua vida profissional como constatámos acompanhando-o sempre de perto desde o nosso encontro e camaradagem durante vinte e oito meses contínuos de situação de guerra no Norte de Angola. Ele que corria imediatamente agarrado à sua maleta de pronto-socorro mal era informado de alguém ferido, e que só não conseguiu dar vida aos que lhe chegavam às mãos já mortos; Ele que socorreu homens e mulheres de tantos males e salvou tantas vidas não pôde socorrer e salvar-se a si próprio da implacável corrosão do tempo; já alguns homens poderosos da mitologia tentaram lutar e matar a morte para tornar-se imortais contudo, o Dr. Pimenta imortalizou-se, junto de nós, pela suas qualidades de amizade, entrega, competência e generosidade dedicadas aos outros que dele precisavam.

Todos nós, os homens do Esq.Cav.ª 149, temos de algum modo e sob qualquer um aspecto da nossa vida na guerra em Angola, uma dívida de gratidão pelo apoio clínico primeiro e depois pelo apoio moral, psicológico, conselho amigo e familiar, que prestou desde o primeiro momento a todos igualmente; dedicou-se aos outros como se todos fossem de sua família e, verdadeiramente, tornou o Esq. 149 numa grande família na qual Ele era a figura paternal que todos escutavam e em quem todos confiavam abertamente. 

A sua atenção acerca da saúde física, moral e mental dos homens do Esquadrão era permanente e nunca deixou que algum deles ultrapassasse o ponto de não retorno ou caísse em situação de demência mental por cansaço ou por medo do perigo eminente; até como homem militar era um exemplo de coragem inteligente que sabia correr os riscos necessários para o socorro sob combate.

Por nossa vontade quereríamos tê-lo, para sempre, junto de nós mas o que nós queremos não conta perante a lei não escrita mas rigorosa e inultrapassável na vida dos humanos sobre a terra. Assim, resta-nos a ajuda do seu exemplo para completar a caminhada e pensar que Ele está algures, observando-nos.