quinta-feira, 7 de maio de 2020

TEMPOS DE PANDEMIA: A "GUERRA" AO VÍRUS E A GUERRA MESMO.


 DISTRIBUIÇÃO DO CORREIO

«Este período de confinamento, longe de estimular a solidariedade, tornou-nos mais rudes, agressivos e egoístas.» 

Esta frase, como se constata, é pensada em relação ao problema da pandemia da actualidade e foi publicada num texto do Blog "Ponte Europa" de autoria de Carlos Esperança. Este autor que costumo ler embora não assiduamente no seu Blog referido foi combatente na Guerra Colonial e quando fala dessa sua experiência não poupa nas palavras contra a desgraça motivada e estimulada pela guerra. Maldiz da guerra mas fala de experiência própria e fundamenta racionalmente a sua inimizade à guerra que, aliás, tal malquerer é comum a todos que a viveram na pele e no osso.
Mas esta frase, talvez pela comparação generalizada na fala corrente entre o combate na guerra e o combate ao vírus, fez-me lembrar imediatamente a guerra por onde andámos nós todos submetidos.
E sobretudo por ter bem presente na memória 149 o célebre discurso do Dr. Alves Pimenta, nosso mui estimado merecidamente médico do Esq. Cav.149, no qual ele refere mui explicita e precisamente o contrário da ideia de que a guerra nos tornou "mais rudes, agressivos e egoístas".
Ao contrário, diz o Dr. Pimenta, a nossa participação na guerra e combates sob perigo de vida ou morte vividos em comunidade isolada no interior das matas e picadas angolanas, tornou-nos mais compreensivos e sábios para enfrentar situações complexas de resistência perante a dureza da luta diária pela sobrevivência ao longo da vida civil corrente. E também, segundo o Dr. Pimenta, tornou ainda melhores todos os Soldados de bom carácter e menos agressivos e rudes os mais primários e analfabetos oriundos de Aldeias profundas escondidas nas serras.
E, claro, vivendo assim isolada e diariamente numa comunidade pequena de Esquadrão, ou Companhia, a entreajuda e amizade criada na luta de todos pela sobrevivência comum e de cada um torna obrigatório e evidente que o egoísmo individual quase desapareca no momento e perdurará na memória como força de contenção egoísta pela vida fora.
A guerra mata e o vírus também mas deste precisamos ser vacinados anualmente enquanto a guerra foi uma vacina para a vida toda; ninguém mais quer e evitará conscientemente voltar novamente à guerra com armas  de morte na mão. 

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A distribuição do correio
era a festa do acampamento.
O grande momento
ansiosamente aguardado, também com algum receio
das notícias boas ou más que vinham no envelope
que mal era recebido pelos Soldados se afastavam,
isolando-se, com as cartas na mão que abriam.
E liam ávidamente, de enfiada, d'um golpe,
vendo-se claramente do que as cartas lhes falavam
porque enquanto uns ficavam contentes e sorriam
outros ficavam preocupados de rosto pesado e sério.
E outros, que liam e reliam as doces palavras da amada,
entusiasmados, atiravam-se sobre a manta estendida
no chão, que era a sua cama sempre feita,
ajeitando-se como quem com uma mulher se deita
ou como se estivesse alguma ali deitada
meiga e sorridente, aberta e pronta, toda oferecida
ao furor
desse doce e indecifrável mistério
que permite a dois amantes fazer amor
mesmo, como neste caso, afastados meio hemisfério.

No dia seguinte de manhã não houve alvoroço,
todos ficaram até mais tarde na manta-cama
descarregando intensamente os sonhos e desejo moço
à terra, ao céu ou àqueles a quem se ama
e tinham enviado boas notícias recentes
que lhes mantinham as almas ainda quentes
ou em brasa, conforme os casos,
levando a que, dos Oficiais aos Soldados rasos,
respondessem logo
apagando a labaredas do aceso fogo
sobre o corpo aberto dum extenso aerograma.
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Excerto do poema "O Correio" do livro "Esquadrão 149, Os Trabalhos e os Dias" de José Neves.


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