domingo, 21 de maio de 2017

A PROPÓSITO... (RUBEN VERSUS CARDONA)

Alferes Ruben

 Cabo Botas Cardona



No final de 1960 princípios de 1961 andava a tirar a especialidade de Carros de Combate M45 (Paton) integrado no  Curso de Sargentos Milicianos.
Andavam connosco, os milicianos, cerca de uma dezena de Sargentos do Quadro vindos de Macau que além de alunos, como graduados, tinham a responsabilidade de logo pela manhã formar o Pelotão de Instrução até que o Tenente chegasse.
Da janela do Comando do Grupo Divisionário de Carros de Combate avistava-se a formatura da manhã do nosso Pelotão de Instrução. Acontecia que, dada a grande familiaridade estabelecida entre os tais Sargentos e alguns milicianos através do vício do jogo aquela formatura até o Tenente instrutor aparecer era uma bandalheira total que o Coronel Comandante do Grupo Divisionário observava da sua janela.
Certa manhã o Tenente, avisado pelo Comandande, espreitou a bandalheira e desatou a desancar no Sargento que estava à frente da formatura. Este, aflito, como eu no momento estava a rir da sua aflição, apontou-me ao Tenente como o culpado de toda a situação de bandalhice que todas as manhãs havia naquela informal formatura militarmente tida como pouco digna.
Fui levado ao Comandante e este começou por me mandar pôr em sentido e a tomar-me como o fautor dos males todos que haviam e até dos males do futuro ao argumentar com a minha futura responsabilidade de como futuro Cabo Miliciano vir a estar à frente de uma eventual identica formatura militar.
Respondi-lhe que não era eu o causador dos distúrbios, que respeitava ordeiramente os preceitos militares e, como tal, o meu comportamento naquela ou noutra formatura futura não era passível de promover e menos ainda de provocar bandalheira, que o Sargento me tinha apontado a mim como bode expiatório para salvar os seus amigos de jogatana de casino.
Irritou-se ao ponto de se engasgar e quase não conseguiu pronunciar a sentença: cinco dias de detenção.

Passados pouco mais de quinze dias foram os exames finais de curso sobre a especialidade do carro M45. Mal foram conhecidas as notas onde eu fora o 1º classificado soube-se que pontos desse exame final tinham sido roubados na Secretaria do vizinho Grupo de Carros de Combate do Regimento de Cavalaria 8 de Castelo Branco sediado ao nosso lado separado por rede de arame.
Estalou uma bronca muito maior e militarmente muito pior que aquela do mau comportamento de uma formatura em regime de espera em "à vontade". Todos os camaradas de curso foram defender que não sabiam quem roubara ou soubera dos pontos antecipadamente mas, sobretudo, defenderam,  a certeza que eu sabia a matéria toda e bem e jamais precisaria saber previamente o ponto pelo que a minha nota era limpa sem dúvidas. Foi um movimento comum geral certo e correcto mas sobretudo generoso tomado como compensação e, agora, como expiação da culpa sobre os cinco dias de detenção que tinha apanhado por culpa deles.

Fui, de novo, chamado ao Comando do Divisionário e o mesmo Comandante, depois de várias considerações e recomendações, voltou-se brusco para mim e disse:
"Você é um verdadeiro militar. Sabe, um verdadeiro militar é aquele que tem castigos e louvores".
No dia seguinte saiu na Ordem do Dia à Unidade um louvor à minha actitude de não ter conscientemente participado na consulta prévia dos pontos do exame final e mesmo assim ser o melhor classificado.

O Palhavã conhecia bem esta história e foi um dos meus principais defensores na altura. E respeitava-a pois em Angola quando era preciso respeitar a tradição militar como sendo a "antiguidade um posto" ele cumpriu-a sempre comigo embora fosse mais intimo que eu junto do Comando do Esq.149. 
Ele sabia, reconhecia e respeitava que eu, como melhor classificado do nosso curso era, militarmente, como tropa, mais "antigo" que ele.

Vem isto A PROPÓSITO da relação que se estabeleceu entre o Alferes Ruben, 2º Comandante do ESq. 149, e o Cabo Quarteleiro Botas Cardona durante a nossa dura passagem pela Guerra Colonial em Angola entre 1961 - 1963.
Neste caso, não se trata de um caso passageiro como o meu, mas de uma relação iniciada nas condições perigosas da Guerra e diariamente duras e conflituosas na gestão de relações entre homens jovens afastados longe de familiares, mulheres, noivas, namoradas, ofícios e amigos deixados nas suas Aldeias pobres do interior.
Um pouco como eu, também, o Cardona teve o seu Comandante que lhe deu um castigo e um louvor e, ao contrário do meu caso que foi momentâneo, até hoje mantêm entre eles uma amizade inabalável feita de discórdia e concórdia permanentes sobre os problemas herdados pelos sobreviventes do Esq. 149 acerca da melhor forma de respeitar e preservar a memória do Esquadrão.
Como é da natureza de uma fraternidade nascida e cimentada nos perigos de vida ou morte na Guerra e da necessidade de entreajuda pela sobrevivència, a concórdia e a amizade vencem sempre.

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Naquele sitiado redondo recinto
vivia-se ao redor do instinto
de estar vivo a cada instante,
de bater-se para existir e durar,
de acordar de manhã e ir mijar,
de sentir, ver e tocar a pujante
e viril aparelhagem
fonte de vida, medo e coragem.
Vida de Soldado, vida ingrata,
vida de guerra, vida preta,
jogo de azar, jogo de roleta,
jogo de repouso, jogo de carta.
À noite havia jogo e banca aberta
ao angolar, no Poker e na Lerpa.
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Do poema" O Jogo de Cartas" do livro de José Neves "O Esquadrão 149, A Guerra e os Dias"

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