A certa altura do decorrer da peça o velho "Alferes" diz: - qualquer dia já não há ninguém para contar como foi... -.
É
verdade. É uma verdade que esconde uma mentira; a questão é porque
razão nunca ninguém foi ouvir e entrevistar os Oficiais Comandantes
operacionais da guerra, os Capitães, Alferes, Sargentos, Furriéis e
Praças que viveram juntos dia a dia a guerra no mato com os seus
Soldados e seus problemas. Pelo contrário, sempre os escritores e
artistas se basearam em relatos específicos contados em 2ª ou 3ª pessoa
já adulterados pelos preconceitos culturais ou ideológicos individuais
de cada contador.
Por exemplo, Artur
Agostinho quando enviado como repórter da RTP para cobrir a tomada de
Nambuangongo queria estar lá antes das tropas para relatar a chegada;
dada a evidente impossibilidade de tal e face ao grande medo, para si,
que era seguir embebido numa das duas colunas que se dirigiam
rapidamente para a tomada daquela importante base do inimigo resolveu,
de acordo com sua cultura de habitual e popular relator futebolístico,
descrever para os ouvintes, a tomada de Nambuangongo como um despique
futebolístico Benfica - Sporting. E deixou tal registado em livro como
seu estúpido troféu de guerra.
Também
a mensagem deste texto e encenação de "Um gajo nunca mais é a mesma
coisa" está untado de preconceitos; desde logo do preconceituoso ponto
de vista criado e fomentado pela elite dos "exilistas", os que se
exilaram em Paris, Estocolmo, Roma e outras capitais europeias. Quando a
falaciosa inglesa "jornalista?", "socióloga?" ou simplesmente
"revolucionária?" pergunta; - e vocês foram assim para a morte e não fizeram nada?
-, está completa e intencionalmente a ocultar a situação política e
social em Portugal naquele tempo; a obrigatoriedade imposta pela
ditadura, a pobreza das famílias das aldeias e seus filhos aldeões quase
totalmente analfabetizados sem os mínimos recursos financeiros e apoios
fora do seu ambiente familiar, sem passaporte nem condições de obtê-lo e
sob o horror do medo oculto de represálias sociais exercidas pela
polícia política sobre a família.
Ainda
assim, muitos rapazes pobres filhos dos primeiros emigrantes a "salto"
para França seguiram as pisadas dos pais ou familiares e arriscaram tudo
abandonando a farda no dia do embarque e fugir para a Guarda afim de
passar a fronteira a salto com destino a França, não para se dirigir a
um hotel e esplanadas dos cafés parisienses mas sim, para se dirigir ao
"bidonville" e ao trabalho duro no "bâtiment", como foi o caso do
Juvenal em 12 de Julho de 1964. Mas estes fugiam primeiro da miséria e
depois do acréscimo de miséria que a guerra lhes acrescentava às suas
vidas; fugiam daquela miséria portuguesa característica que tanto
impressionara horrivelmente a fina sensibilidade da jovem revolucionária
inglesa quando viajava com o namorado do Porto para Lisboa.
Também
quando o "Alferes", que nunca mais foi o mesmo, se refere aos militares
que no "Cu de Judas" ou seja, isolados do mundo no meio do mato durante
longo tempo e sempre sob forte tensão emocional por estarem
permanentemente cercados do inimigo e sujeitos a ataques constantes,
dava-lhes o "badagaio" moral e sobretudo psico-mental está a contar a
guerra pelo falso prisma do médico Lobo Antunes que distorceu totalmente
a verdade sob a forma de uma ficcão literária quase paranoica para seu
gozo pessoal; qualquer Unidade Militar nessa situação não estava mais de
5-6 meses sem ser rendida. Mas se tal se passou com o Dr. Lobo Antunes,
ou outro médico, são deles a maior responsabilidade por tal se ter
passado e com tal severidade; eu estive por duas vezes numa situação
dessas, contudo, o nosso Ten. Mil. médico Dr. João Alves Pimenta estava
atento e tratava do caso de modo a alterar a situação clínica desses
homens abatidos, "em baixo": sempre atento, mal detectava sintomas de
tal fazia uma inspecção médica e aos homens em estado de mal-estar
mental mandava-os de férias clínicas uns dias para Luanda, que eles já
conheciam bem, e vinham de lá mais prontos para suportar de novo mais
algum tempo de isolamento, perigos e intempéries.
A
guerra também são as pessoas e as suas circunstâncias; a pessoa do
nosso médico, face às terríveis circunstâncias, não as podendo alterar
contornava-as com escapatórias possíveis; assim, sempre atento na
protecção da melhor saúde e bem-estar dos soldados nunca deixou que tais
males tomassem conta dos homens sob seu controlo clínico; nenhum
elemento do nosso Esquadrão foi repatriado ou embarcou em Luanda de
regresso com problemas psicológicas; nem pela vida fora no meio da selva
humana da vida civil houve algum caso de "velhote despassarado"; pelo
contrário, como lhes dizia o Dr. Pimenta nas nossas confraternizações
anuais, a guerra tinha-os tornado mais fortes, mais conscientes e melhor
preparados para suportar os trabalhos duros na selva humana da vida
civil.
Sem
querer, a encenação dá duas verdadeiras imagens da guerra colonial,
precisamente, quando nos quer dar a entender de princípio ao fim, que a
nossa guerra colonial foi uma bestialidade de matanças de pretos
cometidas por soldados portugueses. Primeiro, quando é encenada com
fortes e ruidosas luzes, sons de metralha e helicóptero, uma
confrontação terrível entre as duas tropas inimigas e, depois, passado o
terrível confronto, vê-se apenas no palco o "Alferes" ferido e do
inimigo não se vê nem mortos nem feridos, nada. Ora esta situação foi,
que eu vi, a mais corrente naquela guerra de guerrilha e no meu tempo;
talvez tenha sido caso único mas eu nunca vi um "terrorista" morto ou
ferido no entanto vi cinco mortos e dezenas de feridos do meu lado.
Segunda
situação dá-se quando os nossos soldados em formatura respondem "à
chamada" e só depois de muitos "presente" chega o momento de ficarem
engasgados e calados perante o nome de um não presente, isto é, de um
morto. Significam estas duas situações que quer do lado dos portugueses
quer do lado inimigo as baixas foram imensamente menores do que os
relatos jornalísticos, revisteiros, livrescos, cinematográficos e agora
também teatrais, dão a entender e dramatizam por questões comerciais ou
ideológicas.
Também
a ideia feita de imensos massacres cometidos pelas tropas coloniais é
falaciosa como o prova a fala da jovem inglesa quando menciona os
massacres de Nambuangongo, Wiriamu e outro que não fixei o nome. Ora em
Nambuangongo, posso afirmar eu que participei nessa operação, não houve
qualquer massacre nem podia haver dado que as populações nativas tinham
todas fugido para esconderijos na mata impenetrável para nós; terá
havido sim algum tipo de massacre inicialmente nessa região como
resposta enlouquecida ao massacre da UPA de 15 de Março de 1961. E, este
massacre, causa principal do início da guerra colonial, cometido pelo
inimigo terá sido mais brutal e numeroso em vidas humanas que todos os
outros cometidos pelas nossas tropas depois; contudo nunca tal horrível
cometimento é referido para não sujar a ideia que se pretende fazer
passar de que os soldados portugueses combatentes foram todos uns
criminosos de tal modo ferozes e obscenos que agora são todos "Alferes"
velhotes passados dos cornos ou taralhoucos pós-traumáticos.
E
o que dizer da revolucionária inglesa que diz ter falado com muitos
"velhotes" combatentes e daí retirou a certeza de que todos esses
antigos soldados, hoje em dia, são racistas reaccionários que votam na
extrema direita? Teve o desplante de perguntar a dois combatentes
presentes que eram de direita e logo ali concluiu reiteradamente que,
hoje em dia, são todos fascistas mesmo quando antes eram revolucionários
e votavam comunista. Como pode saber e ter tanta certeza a inglesa
revolucionária que todos os antigos soldados combatentes são fascistas?
Terá ela o condão de ver um Mussollini desenhado na testa de cada
combatente da guerra colonial? Haverá assim tanto fascista por cá e,
contudo, após a democracia, ainda nenhum partido de raiz fascista ganhou
eleições e governou o país?
A revolucionária inglesa, que faz uma espécie de papel de compère
que está sempre em palco dizendo o texto e marcando o ritmo da
encenação, faz lembrar aquelas jovens revolucionárias que vieram da
Europa universitário-revolucionária, logo após o 25A, ensinar a fazer a
revolução aos portugueses. Claro, passado a festa revolucionária e
instalada a democracia, voltaram para as esplanadas de Paris a tomar o
seu cafezinho e ler Marx, Sartre e Althusser com mais atenção para na
próxima não falharem.
A ideia que
constitui a mensagem central da peça encenada é fazer passar o
preconceito de que todos os soldados combatentes andaram e passaram todo
o tempo a matar pretos na guerra colonial; são todos, hoje, uns velhos
maus, fascistas, racistas, porcos e desdentados como, não só se dá a
entender em toda a fala da observadora inglesa ao longo da peça como até
o declara aberta e ostensivamente.
A
rapariga observadora inglesa funciona na peça como a voz do "argumento
de autoridade"; à boa maneira subserviente portuguesa foi preciso chamar
uma autoridade "lá de fora" em matéria de guerra de guerrilha para
explicar académica e autoritariamente ao Zé o que foi a nossa guerra
colonial "sem papas na língua e sem espinhas". Fala ela de massacres mas
saberá ela como conseguiram os seus ascendentes ingleses vitorianos
conquistar o maior império já visto sob o céu? Pensará que foram armados
de gaitas-de-foles e encantaram os nativos da Índia, América,
Astráulia, África do Sul, Médio Oriente, o mar e recheio de navios que o
cruzavam e até o Rochedo de Gibraltar?
O
preconceito fica inscrito no texto e também na encenação desde logo
quando o assunto se centra numa história humana particular comovente.
Mesmo quando fundamentamos textos e opiniões em estatísticas e dados
rigorosos acerca de um assunto de ilimitada subjectividade e
complexidade nunca conseguimos captar a verdade nem seque a melhor
verdade acerca desse assunto; o mais provável é que nos faça ferver o
sangue, deixemos cair uma lágrima furtiva e gerar em nós uma falsa
certeza moral.
É o que
nos acontece quando pensamos acerca da relação entre nós e o inimigo
relativamente à guerra colonial. Retrata-se esta a partir de casos muito
particulares para, emocionalmente, extrairmos ideias gerais fixas
erradas e preconceituosas. Por exemplo, se alguém que esteve na guerra,
teve experiência de baixas havidas em algumas Companhias ou Batalhões,
pensar racionalmente e fizer simples contas aritméticas rapidamente
chega à conclusão que, o mais provável, foi que houve mais mortos nas
nossas tropas do que nas do inimigo. Ora se assim foi, como se pode dar a
entender ou até formular e afirmar como verdade certa que todos os
soldados portugueses são assassinos que andaram todo o tempo de guerra a
matar "pretos"?
Explica-se tal,
exactamente, porque nunca ninguém foi falar seriamente com quem andou a
comer a ração de combate untada de pó das picadas; antes pelo contrário,
apenas ouvem e lêem as ficcções livrescas de quem por lá andou a
escrever cartas choramingas de saudades pela mulher esquecendo-se que os
soldados também tinham mulher, filhos e pais que choravam e rezavam por
eles nos recôndidos das aldeias remotas.
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