quarta-feira, 24 de novembro de 2021
quinta-feira, 18 de novembro de 2021
SABER COMANDAR PARA ALÉM DO "RDM", COM SUCESSO.
Era algo tão inesperado que parecia apenas pensável por alguém diferente e distante da normalidade dos estudos militares. Contudo quem o pensava e propunha era, precisamente, um Cap. Cavª. professor de táctica militar na Academia.
Talvez por ser pensador académico sobre tácticas militares, ou por isso mesmo, quando foi mobilizado meditou sobre a especificidade daquela guerra de guerrilha ou por pura intuição e imaginação ou, melhor, por uma conjugação das duas coisas o Cap. Abrantes foi sempre inventor-criador de ideias fora de todas as ortodoxias militares; aliás como se impunha naquela guerra.
Foram, cronologicamente, surgindo as seguintes imaginativas e inovadoras soluções de comando:
1º. Tudo começa ainda o Esquadrão não estava completo e só parte dos militares mobilizados tinham fardas de caqui para uso no ultramar e ele manda formar, na parada do Reg. Cavª. 7, algo à semelhança de um Pelotão e ordena ao Alferes de serviço; - agora vocês vão descer pelos passeios dos dois lados da Calçada da Ajuda, devidamente equipados à Ultramar e de "mauser" na mão e, quando o Alferes apitar, vocês têm de desaparecer imediatamente do passeio; devem enfiar-se dentro dos cafés e casas de comércio ou mesmo pelas portas e janelas das residências locais -. Tudo foi cumprido como descrito e imagine-se o susto dos passantes e especialmente dos residentes ao verem suas casas invadidas, de repente, por homens desconhecidos armados. E também tudo, aquando dos ataques nas picadas da selva angolana, não foi muito diferente do que imaginara o Capitão na selva humana da Calçada da Ajuda em Lisboa.
2º. Se não desembarcámos em Luanda vestidos e equipados à índio partimos de Luanda para o Caxito, Fazenda Tentativa, mascarados com um lenço preto ao estilo de uma mascarilha à Zorro; atravessámos Luanda de farda de caqui nova, barrete de dois bicos bem espetados à cavaleiro e também bem ao alto as antenas dos rádios de transmissões; até à Fazenda Tentativa não havia pó mas a ideia era, mais uma vez, impressionar os possíveis "olheiros" do inimigo em Luanda.
3º. Na Fazenda Tentativa onde estava instalado o Comando da ZIN, Zona de Intervenção Norte, o Cap. Abrantes, depois de uma reunião onde aceitara participar na perigosa Operação Viriato que consistia na tomada de Zala e, se possível, a tomada de Nambuangongo, reuniu o Esquadrão em formatura à tardinha e preparou o pessoal para uma grande e prestigiosa mas igualmente perigosa operação em que iríamos tomar parte a partir do Ambriz; depois de referir os perigos dado termos de enfrentar o inimigo em terreno ocupado por ele desde o 15 de Março de 1961acabou dizendo: - não se preocupem porque foi-me entregue uma caixa preta que detecta todos os terroristas escondidos ao longo das picadas -. Os Soldados ficaram intrigados e muitos perguntavam se era verdade que o Comandante tinha essa caixa especial à qual os subalternos respondiam, sem desfazer o efeito mágico-psicológico da afirmação, que se o Capitão o dizia é porque era verdade. Verdade foi que muitos homens do Esquadrão foram receptivos à ideia, ficaram mais calmos e todos foram dormir mais descansados.
4º. No Ambriz, com o Esquadrão já preparado para arrancar naquela madrugada de 26 de Julho de 1961 em direcção a Zala passando pelo Cavunga, Quimbumbe, Quimazangue, Zala, na véspera o Cap. Abrantes ordenou ao 3º Pelotão fazer o reconhecimento da picada até ao Cavunga onde, segundo informações recolhidas, era suposto haver um aquartelamendo do inimigo e onde, realmente, o Pelotão foi atacado e sofreu cinco feridos ligeiros de disparos de canhangulos. Regressado ao Ambriz e entregue os feridos ao cuidado do Dr. Pimenta, contado ao Cap. o sucedido de imediato recebe ordem para reforçar o Pelotão e regressar imediatamente ao mesmo local afim de surpreender o inimigo e infligir-lhe uma derrota; apesar da contestação veemente do Alferes Ribeiro de Carvalho Comandante do 3º Pelotão este acabou por voltar ao local do quartel da UPA mas os guerrilheiros e famílias puseram-se todos em fuga através dos carreiros da mata. Vários ensinamentos prático-teóricos se retiraram do caso; primeiro, que era da boa táctica militar saber explorar a vitória; segundo, mostrar ao inimigo que a "nossa tropa" não tinha medo daquele inimigo; terceiro, que o Comandante era um militar capaz e sabia o que fazia; quarto, todo o pessoal do Esq. ficou admirado e conquistado pela firmeza e serenidade do Capitão; quinto, perante tal atitude militar toda a Unidade se sentiu mais protegida, mais confiante, sem medos e mais unida.5º. Eram percorridos 110 Km de picada desde Ambriz e estávamos a 30 Km de Zala, acampados na Fazenda Matombe, local de retemperar forças e, sobretudo, repensar a estratégia de progressão; e deu-se o grande salto inovador que consistiu em aliviar as viaturas retirando-lhe toda a protecção improvisada de chapas metálicas que encurralavam e dificultavam o salto dos soldados para o terreno e entrar na mata; aumentar a velocidade de progressão pela táctica da progressão contínua, dia e noite, sem paragem nem aquartelamento; tal foi um sucesso completo pois desmobilizou o inimigo porque não só não tinha tempo de montar obstáculos e emboscadas à nossa frente como os seus ataques nocturnos seriam facilmente localizado pelo fogo dos disparos.
Soube-se depois que o nosso guia e pequeno fazendeiro, Sr. Ribeiro, que fizera a braço próprio a pequena Fazenda Matombe, confidenciara ao Comandante que o gentio local respeitava a noite como momento de estar em casa com a mulher ao abrigo da cubata e ao calor da fogueira. E tal confidência fora a campainha que despertara o pensamento militar do Cap. Abrantes para a tomada de tão inusitada como valiosa decisão.
6º. Na tomada de Zala apesar de um morto e vários feridos ligeiros vários episódios de comando directo se deram. i) Ordenou avançar apeados e no meio da picada pedia com força que os homens seguissem no interior da orla da mata para não serem alvos à vista dos atiradores no alto dos morros laterais, tal como treinara na Calçada da Ajuda em Lisboa. ii) Após a tomada de Zala, o içar da bandeira portuguesa e entregue ao Chefe de Posto a Administração Civil do território local, quis arrancar imediatamente para Nambuangongo. iii) O Cap. dá uma entrevista à equipa da RTP, que nos acompanhava, afirmando categoricamente que chegaria a Nambuangongo custasse o que custasse nem que fosse a pé. iv) Contudo, aqui sofreu um revés dada a oposição dos Oficiais subalternos porque, sobretudo, além dos feridos e esgotados não havia munições suficientes pois pensava-se que o troço para Nambuangongo seria o mais bem guardado e defendido pelo inimigo. v) Capinou-se uma encosta de terreno para servir de pista e permitir aos pequenos Dornier DO 26 aterrar com munições e de volta levar os feridos mas de Luanda enviaram munições de madeira usadas para instrução militar. vi) O Cap. ainda assim, mesmo com tão poucas condições de precaução e ameaças de severos castigos militares, propôs avançar mas não conseguiu demover os outros Oficiais.
Anos mais tarde confidenciar-nos-ia que caso o Pelotão de Panhards dos Dragões de Luanda se dispusessem arrancar falo-ia com mais o Pelotão de Reconhecimento do Alferes Ruben, 2º Comandante, e outro pessoal de serviços disposto a fazê-lo voluntariamente. vii) Tinha tido razão pois o inimigo tinha apostado tudo na defesa de Zala e sentiu-se impotente para nos deter pelo que a caminhada, noite e dia, para Nambuangongo deu-se apenas com os contratempos de abatizes e pontes derrubadas ao longo da picada até ao objectivo final. viii) Tinha-mos ganho um dia, contudo, nem mesmo esse ganho seria suficiente pois o Bat. Caçadores 96 do Cor. Maçanita já estava acampado há dias a cerca de 6 kms de Nambuangongo.
7º. Depois de um dia passado em Nambuangongo o Esq. recebeu ordem de desobstruir o itinerário até Quipedro passando por Quixico e fazer a ligação com os pára-quedistas que seriam lançados em Quipedro em 13 de Agosto de 1961. Cumprida a rigor tal missão lá ficamos até 4 de Setembro depois de dois mortos, o Soldado Aguiar e o 2º Sargento Mota e vários feridos dos quais cinco evacuados e um deles, o Furriel Milho, cego de uma vista.Também aqui se dá uma atitude enérgica, e talvez inédita, por parte do Ten. Mil. médico Dr. Pimenta que, segundo o entendimento e escola de comando do Cap. Comandante Abrantes, contra o regulamentado obrigou o Oficial piloto do Dornier a transportar o 2º Sargento Mota para Luanda não obstante o considerar morto contra a opinião médica que o considerava ainda vivo e responsabilizava o piloto pela eventual morte do Mota por falta de socorro; depois do Aguiar que tivera morte instantânea nunca mais o Dr. Ten. médico deixou que outro morto fosse enterrado no mato.
Haveria de dar-se mais tarde outra situação idêntica no Mucondo com o soldado Pires manifestamente morto mas que o Ten. Mil. Pimenta fez valer a sua condição de médico para obrigar o Cap. piloto a transportar o morto para Luanda; havia uma consonância de pensamento entre Cap. Comandante e Os Oficiais do Esquadrão de como conduzir a tropa naquela situação de guerra isolados no mato rodeados de inimigos; os soldados observavam e sentiam o valoroso comportamento dos Oficiais em sua defesa e orgulhavam-se disso pelo que, por sua vez, estavam sempre prontos e disciplinados a seguir os seus oficiais.
8º. Nova missão foi dada ao Esq. 149: desobstrução do itinerário Quimanoxe-Quijoão-Caje-Fazenda Maria Fernanda-Rio Dange-Cassacala a fim de guarnecer o flanco das tropas que actuavam na "Operação Esmeralda" na área da "Pedra Verde", Úcua. Esta Operação implicava a transposição do Rio Dange na área de Quijoão.
Iniciou-se o acampamento junto da margem direita do grande Rio Dange com a desmatação de uma área para improvisar um heliporto; foi esta a primeira vez que tivemos o apoio de helicóptero que trouxe o tão faltado como desejado correio e transportou os dois feridos graves que tinha-mos sob tratamento médico deficiente na mata.
A antiga jangada existente no local havia sido destruída e os restos jaziam no meio do rio a cerca de 400 m abaixo do local de transposição. Nada metia medo ou atrapalhava a ousadia do Comando e pessoal do Esquadrão; a 13 de Setembro iniciou-se a construção de uma nova jangada improvisando paus arrancados à mata, bidons velhos remendados como bóias, tábuas e pregos achados nas sanzalas abandonadas, arame farpado para amarrar os bidons aos paus de suporte do estrado; dois homens a nado e um cordel nos dentes fez passar o velho cabo de aço para a outra margem e atá-lo a um imbondeiro; com estacas de pau e tábuas velhas construiu-se um pequeno cais à altura da jangada.
A 15 de Setembro deu-se por concluída a jangada abarracada e posta a flutuar, aquela maravilha do improviso à portuguesa único no mundo; fez-se a experiência com um jipão com guincho e cerca de vinte homens para fazer de lastro de equilíbrio face à corrente do rio que era enorme no meio das águas; quando a jangada atingiu o centro da corrente começou a empinar e teve de ser reforçada, com mais homens que a nado atingiram e saltaram para a jangada, uns para fazer peso e outros ajudarem os que agarrados ao cabo de aço, que fazia de guia, puxarem contra a corrente aquela estranha embarcação a fim de a manterem segura e equilibrada; tudo esteve por um fio, contudo, dado a bravura do pessoal de bordo a jangada foi trazida para terra e feitos alguns reparos de estaleiro necessários; alguns bidons apanhados nas sanzalas tinham buracos e foi preciso tapa-los com cunhas de pau; reforçou-se a estrutura de arame que amarrava os bidons à estrutura de paus; procedeu-se a outras pequenas reparações para tornar mais sólida a totalidade da jangada.
E de novo a nossa improvisada embarcação plana foi lançada à água; dada a experiência obtida antes, este segundo lançamento à água correu controlado e a transposição deu-se; agora com um jipão em cada margem tínhamos um sistema motriz de vai-vem para rebocar a jangada contra a corrente mais adversa. E aos vai-e-vem a jangada transpôs os demais jipões e jipes e material dos pelotões de modo a poderem avançar em direcção à Pedra Verde protegendo a retaguarda e linha de fuga do inimigo; só no dia seguinte chegou, escoltada por um nosso Pelotão que já transpusera o rio, uma secção de engenharia com o material requerido para reforçar a jangada e esta poder transpôr as viaturas pesadas.
Esta perigosa e aventurosa mas pensada, calculada e acautelada operação foi executada de fio a pavio sem um único acidente ou a mínima perda de material apesar de alguns ataques do inimigo feitos de longe e sem perigo; foi uma realização espantosa só possível de realizar por tropa competente, moralizada e sobretudo ousada, sem medo de correr riscos.
Após a reacção imediata dos homens do Esquadrão, comandada pelo próprio Cap. Abrantes, dá-se o imprevisível da situação vinda directamente do Comandante; quando os homens do Esq. estavam todos em alerta de armas na mão virados para a mata e local do fogo inimigo, o Cap. Abrantes dá ordem para que o Higino agarre no acordeão e continue a tocar novamente, se possível, ainda mais alto para que o inimigo ouvisse bem.
Era assim o nosso Comandante; quando não havia uma vitória militar no terreno explorava imediatamente uma vitória psicológica sobre o inimigo, se tal fosse possível e adequada. Imaginem o que teriam pensado aqueles homens, já de si pouco foitos guerrilheiros, senão que o ataque fora falhado e mais importante, que tal som sobre-elevado do acordeão serviria para encobrir um assalto do nosso pessoal ao local onde se encontravam os atacantes.
A medida racional do atacante inimigo foi, naturalmente, fugir o mais rápido possível do local e, assim, deixar-nos em sossego, naquela noite e seguintes.
10º. Desembarcámos em Luanda, sob o Comando do Cap. Rui Coelho Abrantes, em 07 de Julho de 1961 e este partiu para Portugal, o "Puto", em 19 de Março de 1962; se, em apenas cerca de nove meses de Comando do Esq. de Cav. 149, o Cap. Abrantes, quer segundo sua previsão do que era aquela guerra de guerrilha quer depois segundo uma observação atenta sobre as condições e práticas no terreno, quer da nossa tropa quer do inimigo acerca daquela guerra, imaginou, pôs em prática e desenvolveu todo um conjunto de ideias inovadoras para a acção vitoriosa do Esquadrão no terreno, a questão é; quantas mais teria imaginado e posto em prática em benefício dos Soldados e glória do Esquadrão de Cavalaria 149 naquela campanha de 1961-1963 em Angola.
terça-feira, 9 de novembro de 2021
JOÃO ALVES PIMENTA 1931 - 2021
Figura exemplo de vida ímpar do Esquadrão foi-o igualmente na sua vida profissional como constatámos acompanhando-o sempre de perto desde o nosso encontro e camaradagem durante vinte e oito meses contínuos de situação de guerra no Norte de Angola. Ele que corria imediatamente agarrado à sua maleta de pronto-socorro mal era informado de alguém ferido, e que só não conseguiu dar vida aos que lhe chegavam às mãos já mortos; Ele que socorreu homens e mulheres de tantos males e salvou tantas vidas não pôde socorrer e salvar-se a si próprio da implacável corrosão do tempo; já alguns homens poderosos da mitologia tentaram lutar e matar a morte para tornar-se imortais contudo, o Dr. Pimenta imortalizou-se, junto de nós, pela suas qualidades de amizade, entrega, competência e generosidade dedicadas aos outros que dele precisavam.
Todos nós, os homens do Esq.Cav.ª 149, temos de algum modo e sob qualquer um aspecto da nossa vida na guerra em Angola, uma dívida de gratidão pelo apoio clínico primeiro e depois pelo apoio moral, psicológico, conselho amigo e familiar, que prestou desde o primeiro momento a todos igualmente; dedicou-se aos outros como se todos fossem de sua família e, verdadeiramente, tornou o Esq. 149 numa grande família na qual Ele era a figura paternal que todos escutavam e em quem todos confiavam abertamente.
A sua atenção acerca da saúde física, moral e mental dos homens do Esquadrão era permanente e nunca deixou que algum deles ultrapassasse o ponto de não retorno ou caísse em situação de demência mental por cansaço ou por medo do perigo eminente; até como homem militar era um exemplo de coragem inteligente que sabia correr os riscos necessários para o socorro sob combate.
Por nossa vontade quereríamos tê-lo, para sempre, junto de nós mas o que nós queremos não conta perante a lei não escrita mas rigorosa e inultrapassável na vida dos humanos sobre a terra. Assim, resta-nos a ajuda do seu exemplo para completar a caminhada e pensar que Ele está algures, observando-nos.