terça-feira, 6 de setembro de 2016

A PROPÓSITO DO FILME "CARTAS DA GUERRA"




Acerca do novo filme "Cartas da Guerra" de Ivo M. Ferreira sobre o tema do livro de Lobo Antunes com o mesmo título Cristina Margato escreveu um texto, que li no blog "Cadernos da Libânia" com o sugestivo título "Dessa Guerra Tantas Vezes Silenciada" em que, a pretexto do filme falava da falta de literatura e cinematografia relativamente à guerra colonial onde expressa a opinião de que "Portugal prefere evitar as feridas da guerra a enfrentá-las".
 Depois, pelo texto fora cita Dacosta;  “Havia uma má consciência, um grande preconceito e até quem dissesse que a guerra pertencia a um género literário menor.”, cita Manuel Alegre; “Ninguém queria ouvir falar daquelas situações de isolamento, emboscada, bombardeamento de napalm, cabeças cortadas”, cita Eduardo Lourenço para quem falta sobretudo o texto fundamental que deveria pertencer aos atores desta história: “Não sabemos os problemas de consciência que os atores tiveram. Sabemos que os tiveram. Só não sabemos quais foram.”, depois cita José Gil; “O salazarismo entranhou profundamente na história portuguesa algo que passa pelo facto de o português não se querer reconhecer a si próprio como responsável. Há uma culpabilização, que já aparece em Antero de Quental, e que faz com que cada um de nós se sinta responsável mas que ao mesmo tempo não aceite que alguém lhe diga que é responsável. O país é uma choldra. Mas eu não sou a choldra.” Se se falou pouco sobre a guerra, continua José Gil, é porque não temos a capacidade de nos reconhecermos responsáveis por acontecimentos condenáveis: “Um povo capaz de dizer ‘eu sou responsável’ é superior, para usar as palavras de Nietzsche, mas aqui não houve essa grandeza.” Uma descolonização relâmpago trouxe uma passagem de um estado a outro, sem a existência de um ritual simbólico.
Por fim diz a autora do texto; Ivo M. Ferreira e Edgar Medina não escondem que nunca foi sua intenção ir além das cartas, ir além do universo de Lobo Antunes. “Essa seria outra história. Pepetela, é curioso, estava do outro lado... Quem quiser pode fazer o filme do outro lado”, diz Ivo M. Ferreira, enquanto Edgar Medina acrescenta: “O facto de o Ivo não ter filmado o inimigo, não o ter presente, e de ter posto aquele grupo de pessoas tão frágeis, no meio daquele espaço tão imponente, perdido no meio do nada, acaba por ser uma metáfora muito poderosa sobre a guerra colonial, o projeto imperial e colonial português. Todo este absurdo, de se estar a travar uma guerra fora de tempo, numa área que é 20 vezes o tamanho de Portugal, com um exército diminuto.”


Os filósofos e psicólogos podem explicar, passadas dezenas de anos, muito pensada e idealmente fundamentada, as razões porque durante tanto tempo os combatentes mesmo, se fecharam em copas e evitaram falar da sua passagem pela guerra.
O problema maior é, como diz Eduardo Lourenço, a "falta do texto fundamental que deveria ser escrito pelos actores", intérpretes da guerra no terreno. A RTP e alguns outros fizeram várias tentativas para explicar a guerra e contrariar o silêncio feito à volta do assunto guerra colonial, contudo, nunca houve a ousadia de entrevistar em vida os Comandantes Operacionais das grandes movimentações de tropas para registo de memória futura e posterior tratamento histórico ou ficcionado. Pode dizer-se que a má consciência acerca da guerra existia primeiro em quem tinha a obrigação de fazer a catarse e limpar da cabeça dos combatentes e dos portugueses essa má consciência.

Mas é preciso lembrar, antes de mais, qual o fundamento original e principal do nascimento dessa tão falada má consciência. Ainda antes do 25A os intelectuais, a maioria dos que se exilaram lá fora e tinham ligações fortes a meios informativos, fizeram sempre uma campanha ideológica a favor da bondade, coragem e heroicidade dos exilados e contra os que iam combater, e combatiam e morriam, nas matas e picadas africanas.
E, dado que tal posição era justamente integrada na guerra política interna contra Salazar e a ditadura que, já nesse tempo, a maioria do povo português apoiava, tal combate ideológico contra a "guerra injusta" e contra os combatentes que iam para África, foi incorporada no pensamento dominante dos letrados e até nos meios de aldeias rurais onde eram recrutados a grande maioria dos Soldados para o Ultramar.
Este processo ideológico dominante culminou mal o 25A se consolidou com a chegada ao poder, nos governos provisórios e institucionais, de uma grande parte de figuras recrutadas, precisamente, no meio intelectual dos exilados. De tal forma que o discurso dominante contra a guerra quase parecia uma outra guerra dos heróis exilados pela sua coragem de rejeitar a guerra contra os fracos que não ousaram recusar a guerra.
Esse sentimento de culpa indevidamente atirado e colado à pele dos combatentes, humildes rurais analfabetos, "príncipes" chama-lhes Lobo Antunes, sem alernativa de escape possível, fê-los cegos, surdos e mudos acerca dessa guerra onde pensavam ter tido comportamento corajoso e de grande fidelidade à cultura e religiosidade familiar e, sobretudo, como militares de total lealdade aos seus superiores comandantes e, desse modo, o sentimento genuíno de ter cumprido inteiramente o que lhes havia sido pedido como sacrifício em nome de Portugal.

Diz a autora do texto em análise que só agora, passado mais de meio século sobre os acontecimentos, começam os nossos intelectuais a interessar-se pelas questões dos traumas da guerra colonial. Na minha opinião porque o tempo parece ter apagado a 1ª versão, à maneira dialéctica portuguesa, de quem foi mais corajoso, de quem foi mais herói, de quem esteve do lado certo, de quem foi mais quem.
Hoje é mais consensual que, afinal, todos deram o seu contributo para a tomada de consciência dos militares de que era preciso parar a guerra. Não é por acaso que os autores do filme dizem "quem quiser pode fazer o filme do outro lado" que, por eles, farão apenas o filme das "cartas" sem outros lados de visão pois que, certamente, consideram haver razões de todos os lados.
Espero que o filme, também reflita e seja reflexo deste novo olhar sobre a guerra pois, caso contrário, só estará a abrir velhas feridas.
 
Contudo, apesar de todas as razões próprias assinaladas e fundamentadas pelos "exilistas" da guerra só um dos lados tem a razão mais forte; a força do sangue. Só os combatentes tombaram e derramaram o sangue sobre as picadas de África em nome de Portugal.
Para a História dum povo nenhum valor é mais forte que o preço de sangue.